13 de Dezembro de 2012

A LADEIRA

Era uma vez dois homens. Um era alto, outro baixo. Um era gordo, outro magro. Um moreno, o outro ruivo. Um tinha a voz muito grossa e outro uma borbulha na ponta do nariz. Um chamava-se Manuel Francisco e o outro Francisco Manuel. E muito mais coisas poderia dizer de cada um deles. Mas, o fundamental, é que eram muito diferentes um do outro. Só numa coisa se assemelhavam: ambos eram tremendamente teimosos.

Na terra onde viviam havia uma ladeira íngreme, inclinada, cheia de pedras e calhaus. Uma ladeira daquelas que a gente só sobe ou desce quando não pode deixar de ser.

Um dia, um dos homens ia a subir a ladeira quando o outro vinha a descê-la. Como é natural, encontraram-se a meio. Bem… A meio, a meio, exactamente a meio, não tenho a certeza se foi. Talvez tenha sido um bocadinho mais para cima ou um bocadinho mais para baixo. Para a nossa história esse pormenor não tem grande importância e, por isso, vamos fazer de conta que foi a meio.

Mais ou menos a meio da ladeira, os dois homens encontraram-se, pararam à frente um do outro e desataram a discutir. Um ia a subir e, por isso, achava que a ladeira era uma subida. O outro vinha a descer e, pelo contrário, garantia que se tratava de uma descida.

Sem chegar a acordo, sentaram-se ali mesmo no chão para tirar a questão a limpo. Quem os conhecesse, sabendo que eram homens de palavra fácil, capazes de inventar sólidas razões e grandes argumentos, logo via que aquela discussão ia demorar. E demorou.

Passaram-se sete dias e sete noites e a discussão não parava. Veio a Lua e foi-se o Sol, veio o Sol e foi-se a Lua e os dois homens a discutir. Nem o frio, nem o calor, nem a chuva, os distraíram. Continuavam na mesma. Para um, aquela ladeira era uma subida porque subia de baixo para cima. Para o outro, era uma descida porque descia de cima para baixo.

A discussão continuou e continuou. À sétima noite começou a soprar um vento muito forte. Um vento tão forte e violento que arrancava terras, árvores e pedras e as atirava de um sítio para outro. Um vento daqueles capazes de trabalhar lentamente, séculos e séculos a fio, para mudar a face da Terra e transformar montes em covas fundas e buracos de meter medo nas mais altas montanhas.

O tempo passou. O vento mexeu com tudo. Mudou a paisagem. Transformou o mundo. Só os dois homens continuavam sentados no meio da ladeira sem darem por nada do que acontecia à sua volta. Estavam tão preocupados, cada um, em ganhar a discussão, que não sentiram nem a chuva na pele, nem o frio nos ossos, nem o sol na moleirinha.

Passaram-se sete mil noites e sete mil dias, os homens a discutir e o vento a trabalhar.

A ladeira, a pouco e pouco, ia ficando diferente. A parte mais alta cada vez menos alta, e a parte mais baixa a crescer sem parar à custa de entulho, areia, calhaus e pedrinhas que a tornavam cada vez menos baixa.

 

Um belo dia, a parte de baixo e a parte de cima da ladeira ficaram iguais, da mesma altura e, portanto, a ladeira desapareceu. A terra ficou direitinha, lisa, uma planície que se estendia até perder de vista.

O vento, sem mais nada que fazer ali, foi trabalhar para outro lado. Os dois homens que, como eu já disse, eram muito teimosos, continuavam a discutir se a ladeira era uma subida que se descia ou uma descida que se subia.

A certa altura, olharam em volta, para um lado e para outro, até onde a vista podia alcançar. Aperceberam-se então que a ladeira tinha desaparecido. Olharam um para o outro, levantaram-se, cumprimentaram-se e, cheios de orgulho, afastaram-se cada um em sua direcção, ambos seguros de que tinham ganho a discussão.

 

José Fanha

A noite em que a noite não chegou

Porto, Campo das Letras, 2001

 

A JANELA E A MONTANHA

A janela abria para a frente, para fora, para o ar lavado da montanha.

Quem dormisse naquele quarto, ao saltar da cama, de manhã, abria a janela de dois batentes como se estivesse a respirar fundo. Enchia os pulmões de ar e os olhos de claridade. Era o primeiro exercício de ginástica.

Podia ficar por aqui, de cotovelos sobre o parapeito, a apreciar a paisagem. Ou podia voltar para dentro, com um pequeno arrepio de prazer.

A janela, que abria para fora, até nem se importava que voltassem a fechá-la. Tinha cumprido a sua missão. Dera, de longe, um primeiro abraço à montanha. Não pedia mais.

Eram muito amigas a montanha e a janela. Não podiam passar uma sem a outra. A janela emoldurava a montanha, por sinal que o seu lado mais fotogénico. A montanha sentia-se protegida por aquela janela prazenteira, sorridente, aberta de par em par.

Mas aconteceu que a estalagem, a que pertencia a janela, fechou. De vez. Falta de clientes, cansaço do dono ou fosse do que fosse, fechou. Portas e janelas trancadas.

A montanha olhava para a janela e sentia saudades. Cá em baixo, no vale, ouviam-na suspirar e diziam:

— É o vento da montanha.

Mas não era. Até a paisagem entristecia.

Da janela e do seu sentir não podemos saber. Pois se estava fechada. Só aberta, toda aberta de alegria é que ela era uma verdadeira janela.

A montanha convocou os ventos para que eles abrissem a sua janela, sem a qual nem as manhãs de orvalho apeteciam nem as tardes rubras do pôr-do-sol nem as noites alucinadas pela Lua Cheia.

— Para quê, para quê, se não tenho a minha janela a ver-me? — murmurava a montanha, inconsolável.

Mas os vendavais da montanha por mais esforços que fizessem, por mais empurrões que dessem não conseguiam abrir a janela. Impossível. Ela só abria para fora.

Desistiram. Não desistiu a montanha, que chorou, noites e noites a fio, a perda da sua janela.

Depois da época das chuvas, voltou o bom tempo. Romperam os malmequeres, no jardim abandonado da estalagem. A montanha cobriu-se de veludo roxo, que era uma maciça penugem de pétalas sobre o chão de urze. Começou a cheirar a rosmaninho.

— Parece que vão reabrir a estalagem, com nova gerência — contava-se, no vale.

E assim aconteceu. Quando a janela abriu as suas duas portadas, a abarcar a montanha, fez-se um grande silêncio.

— Olá, montanha — disse a janela.

— Olá, janela — disse a montanha.

Como se ainda ontem se tivessem visto… Mas ficaram que tempos, que tempos, a olhar uma para a outra.

António Torrado
O coração das coisas
Porto, Edições Asa, 2004

 

A CHOCA

Aquela tarde, a Choca recolhera ao poleiro mais cedo do que o costume. Atrás dela, lembrando doze novelitos de ouro a mexerem-se como por milagre, os doze filhinhos tinham seguido a mãe, – e lá dentro, qual deles com mais dificuldade, um a um tinham-se encarrapitado no velho cesto de palha onde faziam a cama, aninhando-se, o melhor que puderam, debaixo da asa materna.

 Eles mesmos tinham estranhado recolher tão cedo aquela tarde, os pequenitos; – mas, cá fora, o rancho das outras galinhas atribuía isso à doença da Choca, porque a pobre, com o gogo, metia dó com tamanho sofrer! Um pouco aterradas, tinham assistido havia três dias a essa operação que a Choca sofrera, e que certas delas, na grei, sabiam muito dolorosa. A pena que lhe espetara no pescoço a velha que cuidava delas, fora o mesmo que nada, – e se mal estava, pior ficara, a pobre! Ainda a trazia, essa pena, mas quase seca porque não purgava; e entretanto, sem bem lhe fazer, afligia-a como se fosse um estigma, – tanto ou mais que a própria doença...

Por isso recolhera cedo, a Choca; deixando fora, pelo terreiro, gozando ainda o seu resto de tarde, o rancho das companheiras.

 Ai, eram bem felizes, essas! Pelo buraco do poleiro, sentia-as agora cacarejar, – e não tardaria que o milho do recolher, que a velha, todas as tardes, trazia para elas no seu mandil, alvoroçasse no prazer do costume, em que por via de um grão, às vezes, havia entre todas rixas alegres, o bando das companheiras...

Só ela, doente, quase já não sabia o que era comer; – e ainda essa tarde, morta de sede, invejara a gotinha de água que um ou outro dos seus pintainhos, beberricando na pia, deixava, depois de saciado, cair do biquinho como uma pérola.

Mas nem comer nem beber, ela, que era muita a gosma, e não podia! E pelo que tocava a cacarejar, nem o bastante para a ouvirem os filhos, para os admoestar, para os dirigir, – quanto mais para uma dessas tiradas que outrora lhe haviam feito, ao romper da manhã, a sua fama de cantadeira! Galos que ela apaixonara, ciúmes em que fizera arder tantas rivais, ralhos, intrigas, combates, – como tudo isso ia longe, agora! Nos bebedouros, ela mesma se namorara da sua figura esbelta, muitas vezes; – e que o não adivinhara na devoção dos galos, de tantos que a tinham amado, e que ao aclarar das manhãs, todos os dias, lhe declaravam o seu amor dos poleiros à roda, – adivinhara-o na inveja das outras, esse prestígio mágico da sua beleza...

Certo galo, sobretudo, agora já velho, – e, como ela, agora já também sem entusiasmos, dir-se-ia que o enfeitiçara; e agora mesmo, vendo-a recolher cedo com a ninhada, esse velho e trôpego apaixonado (mas belo, ainda assim, na sua justa decrepitude) não tardara a recolher-se também. Subtil, passara, sumira-se ao fundo na sombra densa; e erguendo um voo pesado, sentira-o aninhar-se onde passava as noites, numa trave a um canto do poleiro. Cansaço talvez da vida, talvez doença também, – quem lhe dizia a ela, entretanto, que ele se não recolhera por a ver recolher, por a ver doente, por um impulso de compaixão, que era agora, talvez, como a agonia do seu velho amor?!

Pelo que respeitava às companheiras, as da sua geração eram já poucas; e essas, como ela própria, mais saudosas da mocidade, do que lembradas; e quanto às novas, muitas criara-as ela, – e, sobretudo, não era já dela que tinham ciúmes...

De resto, ela mesmo era boa companheira; e tirante algum fogacho de génio por amor dos filhos, se tinha de os proteger ou se lhos ofendiam, até no comedouro era moderada e no bebedouro; – e muitos pintainhos doutras ninhadas queriam-lhe como se fosse avó, e os frangos, uma vez por outra, ela própria, de manhã, ensinava-os a cacarejar.

Ah, mas esse bom tempo ia passado! Já chocara a ninhada com pouca saúde; e surpreendendo-se, às vezes, sem paciência para aturar os filhos, ignorava se seria por isso, se por a verem talvez doente, que eles mesmos, coitadinhos, pareciam às vezes também doentes!

...Entretanto, eles tinham-se aninhado todos, o melhor que lhes fora possível, debaixo da asa materna; – e embora muito enferma, ela era feliz, ainda assim, por ter tão quentes os seus pequeninos, – e agora, por certo, todos a dormir e talvez sonhando..

 Trindade Coelho, Os Meus Amores, Lisboa, 1891

publicado por O meu portefólio às 21:31 link do post
Sábado, 04.05.13
Peso...
Deste ângulo posso observar a humanidade caminhando lenta e desgastada de propósitos...
Consigo ainda ver pessoas agarradas ao que resta das suas andrajosas vestes simples originais...

Não é de marca esta espécie, nem de espécie nenhuma com uma marca destas...
É só um assobio do vento gélido que sopra constante e redobrado...

Será de paz podre afinal que precisa... Ou será de uma alma talvez... Não sei... Ela não me olha directamente nos olhos...
Confundem-lhe os meus ociosos pensamentos nefastos... E as coisas ás avessas que deles saiem... Ditam a ordem no caos...

Vem pesada vem lenta e arrásta-se, já não é de força já não é de nada e só projecta no limbo a sua ex-radiação, de tão longe que vai a sua luz...
Tenta enganar o tempo que a empurra por trás em movediça agonia de inércia, como um tenebroso relógio que teima em bater sempre e mais ainda...

Sendo assim, bata então ritmado o meu coração espásmico... Enaldeça então a mão em nobre gesto levantada e catando pra mim esse ar novo e renovado...
Que rasteje então sob meu peso e de minha atitude o orgulho de andar morto por aí... E que se facam ouvir as vozes mais caladas lá atrás, elas se dizem pouco... Pouco hão-de errar !!! Ass. Vegeta.
vegetazzz a 5 de Maio de 2013 às 22:56
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